Em 2009 eu vivia o pior relacionamento de toda a minha vida e sabia disso. Não vou entrar em detalhes aqui até porque é desnecessário para aquilo que esse texto almeja abordar. O importante é que o relacionamento era um barco furado, em chamas. Não me acrescentava nada. Me paralisava, me isolava, me deixava infeliz e ainda corroía aos poucos a minha fé na felicidade. E aí entra a pergunta: Bem, se não havia mais nada, porque então se manter ali numa espécie de autodestruição tácita? Eu me fazia aquela pergunta inúmeras vezes enquanto me fingia de rogada e aceitava ideias como: "Sandra, você é carente."; "Sandra, você não quer ficar sozinha." Mentira. Tudo o que eu mais queria era ficar sozinha. Eu preferiria morrer queimada a continuar naquele relacionamento, seria mais prazeroso. Mas continuava ali, teimosamente, inerte, sem forças pra por um fim naquilo tudo.
Então uma amiga minha da época da faculdade, que já tinha atingido o mais alto grau de inconformidade com aquele desgaste em vão, me indicou uma terapeuta. E lá fui eu, timidamente, para uma experiência que eu previa ser fadada à desgraça. E aqui faço uma pequena pausa para me explicar. Nada tenho e nada tinha contra a terapia. Ao contrário. O problema é que sou de escorpião e tenho uma imensa dificuldade em expor minha vida, minha intimidade, meus anseios mais profundos, minhas dores. Comigo isso só acontece depois de muita - muita mesmo - convivência. Sou o que se chama em Inglês de "dark horse". Demoro a me abrir. E isso só acontece com a chave certa, há que haver afinidade, confiança.
Mas fui e comecei a terapia. Hoje sei que foi o que de melhor fiz por mim. Embora as primeiras sessões tenham sido inférteis sob o meu ponto de vista - eram um marasmo de silêncio porque eu não me abria e nem sabia por onde começar a conversar com aquela pessoa estranha - continuei indo. Continuei por teimosia ou por aquela necessidade premente de não me afogar junto com o barco, de não me perder de mim para sempre.
Com o tempo comecei a me soltar e aí vieram os resultados. A grande verdade é que a gente descobre que a terapia está fazendo efeito não pelos momentos em que você sai de olhos marejados se sentindo compreendida. A terapia está começando a funcionar quando você sai do consultório mais forte, confusa ainda, mas com uma imensa vontade de mandar a psicóloga à merda. É aí, exatamente nesse ponto, que a coisa começou a funcionar. Pode ter certeza. A terapia te alcançou e daí por diante a tendência é que comece a fazer efeitos 'a olhos vistos'.
Nesse ponto da minha terapia algo ficou claro. Algo foi finalmente dito: eu havia sofrido uma perda chocante, inesperada, avassaladora e a a minha dor havia sido tão profunda e tão dilacerante que eu havia mudado. A perda me causara uma espécie de desvio me levando a um enfraquecimento progressivo. E a minha dor tinha sido - e ainda era, passados nove anos - tão profunda que eu acabara por assimilar todas as outras dores que não eram minhas. Eu sentia a dor dos outros, inclusive aquela que eu ainda poderia vir a causar. Terminando um relacionamento, inclusive. Um relacionamento que me fazia mal, mas do qual eu não conseguia me livrar porque temia causar dor. E de dor eu entendia como ninguém. Maluco, não?
A terapia levou meses. Poderia ter levado anos. Me fortaleceu. E, depois de muita luta interior, consegui terminar de vez aquele relacionamento nocivo do qual me arrependo amargamente. Meu único e maior arrependimento nessa vida. O grande desafio não foi o 'ato' de terminar em si, de me salvar daquilo. o desafio foi vê-lo sofrer e não tomar aquela dor para mim. Minha terapeuta disse - e disse inúmeras vezes, como se fala com uma criança - que aquela era a dor dele, não a minha. E que eu deveria me exercitar e tentar parar de sentir a dor alheia. Porque, segundo ela, eu sentia a minha dor e a dor do mundo todo com uma intensidade lancinante. E, quem sabe o outro não a sofresse naquela medida, com aquele mergulho ao inferno. Saber encarar a dor do outro com compaixão mas com um certo distanciamento salvou a minha vida. E devo isso à terapeuta.
E porque esse assunto hoje passados quatro anos? Porque há dois meses eu adquiri o hábito de ouvir um programa na Rádio Eldorado todas as segundas à noite chamado "Quem somos nós". O programa é leve, filosófico, brincalhão. Comandado pelo excelente Celso Loducca que ontem entrevistava um iogue. E vinha eu dirigindo perdida nos meus pensamentos quando ouvi o monge contar que sempre padeceu durante toda a sua vida por causa de sua compaixão excessiva. Dizia ele que sentia de forma contundente dentro de si a dor do outro, a dor do mundo. E que enquanto não soube equilibrar essa maneira errada de sentir compaixão e empatia, isso foi extremamente desorientador e prejudicial para ele. Aquiesci silenciosamente enquanto deslizava pelo Rodoanel vazio, escuro e acolhedor. A dor do mundo quase me afogou também. Quase me perdi de mim mesma, coisa que espero nunca mais deixar acontecer.